domingo, 29 de setembro de 2019

Ritos de passagem


Ritos de passagem

Por Aldo Paula
                                         
O intuito dessa preleção é passar, de uma forma simples e objetiva, uma ideia sobre o tema "ritos de passagem", e a riqueza explícita e implícita de extrema beleza e alto valor simbólico e psicológico existentes em uma iniciação maçônica. A passagem de profano a neófito e a Aprendiz da Arte Real, sob uma ótica pessoal, baseada em autores de referência e em minha própria iniciação.

Rito é um conjunto das cerimônias e regras a serem observadas na prática de qualquer religião, seita ou liturgia. É um comportamento repetido e invariável, mantido por um indivíduo na realização de determinada coisa ou atividade, costume, hábito. (MICHAELIS, 2019)

Segundo a visão do antigo filósofo chinês Confúcio, ao contrário de seus significados religiosos usuais, os atos da vida cotidiana são considerados rituais. Os rituais não são necessariamente regimentados ou práticas arbitrárias, mas sim as rotinas em que muitas vezes as pessoas se inserem, consciente ou inconscientemente, durante o curso normal de suas vidas. Moldar os rituais de uma forma que leve a uma sociedade saudável e satisfeita e a um povo saudável e satisfeito é um dos objetivos da filosofia confucionista (CONFUCIONISMO, 2019).

 

O rito de passagem e a iniciação maçônica

 

Desde os primórdios da humanidade as formas de marcar novas fases de algum acontecimento importante na vida de uma pessoa seja ele de cunho familiar, espiritual ou social, ligados a momentos fundamentais como nascimento, iniciação, casamento ou morte e que causam uma verdadeira mudança de vida, de grande importância para qualquer sociedade, são processos sociais nomeados como “ritos de passagem”. 

Nesses processos, Van Gennep (1978, p. 191) apontou um padrão típico: A representação de uma estrutura triádica que consiste na separação, na margem e na agregação.

O rito de separação representa o fim de uma fase, como a morte para o mundo profano por exemplo.

A margem assume papel central, são os limites do mundo doméstico ou às fronteiras entre o mundo profano e mundo sagrado.

O rito de agregação indica o nascimento, o início de uma nova fase.

Posteriormente essa tríade foi rebatizada por Turner (1977, p. 36) como preliminares, liminares e pós-liminares ou como Terrin (2004, p. 100) expressa: a condição precedente, o período de marginalidade e a inserção na nova condição.

Um exemplo muito presente na cultura latina é o batismo, que é um rito, feito normalmente com água sobre o iniciado através da imersão, efusão ou aspersão. Este rito de iniciação está presente em vários grupos, religiosos ou não, onde destacam-se os cristãos.
Batismo de Cristo 1481-1483. Por Perugino, na Capela Sistina, no Vaticano

Em algumas religiões, seitas ou ordens como na maçonaria, utilizam-se métodos com forte cunho emocional que comparo com psicodrama, que utiliza dramatização de uma situação com forte carga emocional para marcar o nascimento de uma nova fase na vida de um indivíduo. O rito assim interpretado “causa uma verdadeira mudança de vida, não somente em sentido ético religioso sobre estruturas etárias e ritos de passagem, mas também em sentido físico.” (TERRIN, 2004, p. 34). Segundo Lévi-Strauss (1997, p. 25) , "os requintes do ritual não deixam escapar nenhum ser, objeto ou aspecto, a fim de assegurar um lugar no interior de uma classe: a cada coisa sagrada, seu lugar.”

Para a maçonaria,
a iniciação, tal como concebiam as antigas “Escolas de mistérios”, e tal como praticam ainda as seitas mais ou menos evoluídas da África negra ou da Ásia misteriosa, a iniciação abre portas até então proibidas ao Recipiendário. Além do mais, a transmissão ininterrupta dos “poderes” integra o impetrante à egrégora do grupo e o faz participar, independentemente dele, da vida mística e profunda da própria essência dos símbolos.
Essa “iniciação” verdadeira é una no tempo, no espaço e nos ritos, embora os costumes sociais e étnicos daqueles que a praticam sejam diferentes. A iniciação Maçônica torna palpável essa unidade do conhecimento através das seitas e dos ritos. (BOUCHER, 2015, p.18)

A iniciação maçônica


A iniciação maçônica é o momento mais importante na vida de um maçom, pois é onde tudo começa, extremamente marcante, pessoal, intransferível e inesquecível. Essa iniciação se dá representada em três viagens simbólicas e engloba quatro provas, em referência aos elementos da natureza.

A riqueza dos símbolos é a grande chave da iniciação, Nicola Aslan menciona em sua obra:
(...) Fundando-se na interpretação intuitiva dos símbolos, torna-se um processo de instrução todo pessoal. (ASLAN 1990, p38) o saber iniciático só pode ser adquirido à luz dos símbolos. O iniciado dele mesmo tira o seu conhecimento (gnosis, em grego): ao discernir alusões sutis, ele precisa adivinhar o que se oculta nas profundezas do seu espírito. Aquele que só entende palavras repete a sua lição à maneira de um papagaio, sem agir como pensador autônomo. Posto em presença de um signo mudo, o adepto é obrigado a faze-lo falar: pensar por si mesmo é a grande arte dos iniciados. (ASLAN 1990, p39)

A primeira prova: A terra - A câmara das reflexões


A primeira prova representa a terra, ao meu ver dentre todas é a de maior expressão, pois é o encontro do candidato consigo mesmo. Fazendo uma analogia com os estudos de Van Gennep, pode se comparar com a separação, pois há um choque entre o mundo até então conhecido com o desconhecido. É nesse momento que depara-se com um lugar sombrio, adornado de emblemas fúnebres, ostentando frases de forte cunho psicológico e no qual o candidato faz seu testamento. Tudo naquele lugar remete o aspirante a pensar que está morto, morte esta para o mundo profano, e que purificado e regenerado, deverá começar uma nova vida.

É a terra, pois simboliza uma descida ao centro da terra, como um caixão com restos mortais enterrados.

Nesse período de permanência na câmara de reflexões, no mais absoluto silêncio, nos deparamos com o nosso íntimo. É um momento de maturação silenciosa da alma, por meio da meditação e da concentração em si mesmo, período que prepara o verdadeiro progresso, efetivo e consciente, que se manifestará posteriormente, à luz do dia. (ASLAN 1990, p. 47)

 

A primeira viagem: O Ar


Nessa viagem, após um período de maturação na terra,  já dentro do Templo, vendado e sem poder ver sequer um resquício de luz, porém com os demais sentidos à flor da pele e contando apenas com os nossos próprios instintos, somos tomados pelas mãos, e guiados por uma viagem onde nossa imaginação flui à toda. Além do mais, é um caminho difícil de percorrer, e cheio de obstáculos. Ouve-se ruídos de trovões, que geram sensações de tempestade, até que por fim chega-se no altar do Segundo Vigilante.
 
Os ruídos de trovões representam o segundo elemento, o ar, que é o símbolo da vida humana.
Esta viagem representa também o progresso de um povo. O progresso da vida geral da humanidade, é o seu avançar coletivo. Ela encontra delongas e obstáculos, tem suas estações e as suas noites, mas sabe vencer todos os tropeços e tem seu despertar.
As nações também são cegas, e o destino que as conduz é simbolizado pelo vosso guia (Ritual do aprendiz, 2019 p.88).

A segunda viagem: A Água


Essa viagem é feita por um lugar mais plano e durante o percurso ouve-se o tilintar de espadas, que cessa quando se chega ao altar do primeiro vigilante. Nesse momento as mãos do candidato são mergulhadas na água, que representa o oceano que banha as praias dos continentes e ilhas.
Para devolver ao recipiendário sua segurança, submetem-no à purificação pela água. Trata-se de um batismo filosófico, que lava de toda impureza... Ao ruído ensurdecedor da primeira viagem seguiu-se um tinido de armas, emblema dos combates que o homem constantemente é forçado a travar (BOUCHER, 2015 p.59).

A terceira viagem: O Fogo


Seu percurso é rumo ao Oriente, sem qualquer obstáculo, uma estrada plana e tranquila. Não se ouvem ruídos, além de uma suave harmonia, que termina no trono onde tem assento o V∴ M∴, e após é conduzido a uma pira por onde se passam as mãos por três vezes.
O fogo, cujas chamas sempre simbolizaram aspiração, fervor e zelo, vos lembrará que deveis aspirar a excelência e a verdadeira glória e trabalhar com dedicação pelas causas em que vos empenhardes, principalmente as do povo, da pátria e da ordem.” (Ritual do aprendiz, 2019, p.92)
É a prova do fogo... O iniciado permanece no meio das chamas (paixões ambientes) sem ser queimado, mas ele se deixa penetrar pelo calor benfazejo que dele emana (BOUCHER, 2015 p.59).
Essas três viagens representam a margem, é onde o futuro iniciado, através da purificação pelos elementos ar, água e fogo, já está preparado para passagem do mundo profano para o sagrado.

E é à Iluminação que a iniciação maçônica leva. É esse o rumo tomado por todas as formas de iniciação. Iluminado quer dizer “esclarecido por uma luz espiritual”, e esse é o objetivo final, a agregação, o início de uma nova vida.

 

Considerações finais


Uma das escritas mais emblemáticas que existe na câmera de reflexões é o V.I.T.R.I.O.L.. Esse termo era usado pelos antigos alquimistas, e ao pé da letra quer dizer: “Visita Interiora Terrae, Rectificandoque, Invenies Occutum Lapidem”, ou seja, "Visita o interior da Terra, e retificando encontrarás a Pedra Oculta. Seria um convite à busca do ego profundo no silêncio da meditação: o profano visita o interior da terra, de si próprio, e encontra a “pedra bruta”, a fim de retificar, desbastar e polir, transformando-a em pedra cúbica.
Pedra bruta faz referência à personalidade rude do indivíduo que através das ferramentas ritualísticas e simbólicas da maçonaria (daí a alusão ao  malho, cinzel, esquadro e compasso), deverá ser trabalhada afim de se tornar uma “pedra cúbica”. Ou seja, um ser humano melhor, detentor de conhecimento, e colocar todo esse aprendizado em benefício da humanidade.

Tudo o que se precisa está escondido dentro de nós, às vezes tão profundo que nem imaginamos que exista. Mas, uma vez encontrado, e iniciada uma chispa de luz, é impossível voltar atrás. Torna-se perene.

Aldo Paula, Apr∴ M∴
Setembro de 2019

 

Referências bibliográficas


ASLAN, Nicola. Comentários ao ritual do aprendiz maçom – Vade Mécum iniciático. Editora Maçônica: Rio de Janeiro, 1990.

BOUCHER, Jules. A simbólica maçônica. 2 ed. Editora Pensamento: São Paulo, 2015.

CONFUCIONISMO. In: WIKIPÉDIA, a enciclopédia livre. Flórida: Wikimedia Foundation, 2019. Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Confucionismo&oldid=56361411>. Acesso em: 11 de set. 2019

LÉVI-STRAUSS, Claude. O pensamento selvagem. Ed. Papirus: Campinas, 1997.

MICHAELIS, Dicionário online. Disponível em: <https://michaelis.uol.com.br/moderno-portugues/busca/portugues-brasileiro/rito/ > Acesso em: 11 de setembro de 2019.

RITUAL DE APRENDIZ, Rito Escocês Antigo e Aceito. Grande Oriente de São Paulo, 2019.

TERRIN, A. N. O rito: antropologia e fenomenologia da ritualidade. Ed. Paulus: São Paulo, 2004.

TURNER, V. O Processo Ritual: Estrutura e Anti-Estrutura. Ed. Vozes: Rio de Janeiro: 1974.

VAN GENNEP, A. Le folklore, croyances et coutumes populaires françaises. Ed. Stock: Paris, 1924.

VAN GENNEP, A. Os Ritos de Passagem. Ed. Vozes: Rio de Janeiro: 1978.








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